A RECEÇÃO DO CONCÍLIO – O
QUE MUDOU DESDE ENTÃO
O tema é muito vasto para uma conferência breve,
aludindo a meio século da vida da Igreja e do mundo, ou da Igreja no mundo,
usando linguagem mais "conciliar".
Limitar-me-ei, por isso, a uma linha de verificação
muito restrita, a saber, qual a evolução da sociedade que nos toca mais de
perto e como se compagina ela com as previsões conciliares; olharei também para
a revisão deste ponto na exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Europa,
de 2003, concluindo com algumas das respetivas sugestões pastorais.
A base conciliar propriamente dita vou buscá-la à
constituição pastoral Gaudium et Spes, em duas passagens de particular acerto.
Como a seguinte: «O género humano encontra-se hoje numa idade nova da sua
história, em que mudanças profundas e rápidas se estendem gradualmente ao mundo
inteiro. Provocadas pela inteligência e pela atividade criadora do homem,
refletem-se no próprio homem, nos seus juízos, nos seus desejos individuais e
coletivos, no seu modo de pensar e de agir, tanto em relação às coisas como aos
homens. Assim, pode falar-se de uma verdadeira metamorfose social e cultural,
cujos efeitos se repercutem também na vida religiosa» (GS, 4).
Inserida no número dedicado aos "sinais dos
tempos" e à respetiva interpretação evangélica, esta passagem nunca perdeu
atualidade. Isto se diga da "idade nova" da história, nem sempre
advertida pelos que a vivemos já; isto se diga das "mudanças",
tornadas em categoria base dum entendimento sociocultural correto; isto se diga
ainda de juízos qualitativos, que hoje não são prévios, mas posteriores às
inovações técnicas e por elas condicionados, nem sempre no melhor sentido, humana
e religiosamente falando...
Particularmente tocadas por tais mudanças foram e
são as três gerações que o pós-concílio já leva. Exatamente por isso, não têm
em relação ao passado o acolhimento espontâneo que havia noutros tempos. É como
se tudo tivesse de ser explicado desde o princípio, para conquistar anuência e
assunção pessoal, de alínea a alínea. Mas a constituição conciliar já o
verificava, como se lê a seguir: «A transformação das mentalidades e das
estruturas leva com frequência à discussão dos valores recebidos
particularmente entre os jovens [...]. Está aqui o motivo de, não raro, pais e
educadores experimentarem dificuldades sempre maiores no cumprimento das suas
tarefas. As instituições, as leis, os modos de pensar e de sentir, herdados do
passado, nem sempre parecem adaptar-se bem ao condicionalismo atual: daqui uma
grande perturbação no comportamento e até nas normas que o regulam» (GS, 7). E
tudo isto realmente aconteceu e acontece, a coincidir com uma época em que
escasseia o que mais seria preciso para acolher e dialogar, quer nas famílias,
quer nas escolas, quer nas próprias comunidades cristãs: o tempo, muito tempo
até.
A incidência religiosa destas mudanças é igualmente
óbvia e decorrente. Ambivalente também. Já o era para os autores da Gaudium et
Spes, quando concluíam: «Por um lado, o desenvolvimento do espírito crítico
purifica-a [a religião] de uma conceção mágica do mundo e de superstições que
vão sobrevivendo, e exige uma adesão à fé cada vez mais pessoal e atuante, o
que faz que não poucos atinjam um sentido mais vivo de Deus. Por outro lado,
multidões cada vez mais numerosas afastam-se, na prática, da religião. Recusar
Deus ou a religião, não se preocupar com isso, não é, ao contrário de outros
tempos, um facto excecional e individual: hoje, com efeito, tal atitude é
frequentemente apresentada como uma exigência do progresso científico ou de um
qualquer novo humanismo. Em numerosas regiões, tudo isto não se exprime só ao
nível filosófico; afeta também, e em mui larga escala, a literatura e a arte, a
conceção das ciências do homem e da história e as próprias leis civis...»
(ibidem).
A única nuance a fazer a este trecho conciliar é
que, entretanto, se difundiu uma certa recuperação do mágico, bem como da
religiosidade não institucional, de tipo new age. Mais, muito mais, como devaneio
itinerante do que como compromisso certo. E quem tiver passado as últimas
décadas em contacto com o sistema de ensino, os meios "culturais" e
os media, conhece o autêntico bloqueio cultural com que a afirmação crente se
defronta, por parte dum "cientismo" satisfeito ou meramente
ignorante. Considero este bloqueio uma das fronteiras mais difíceis e exigentes
da nova evangelização, requerendo da nossa parte muito estudo e vontade de
aprender, bem como reforçada disposição para o diálogo e o esclarecimento, com
a maior coerência prática também. Poucas vezes terá sido tão necessário cumprir
a indicação de 1 Pe 3, 15-16: «... no íntimo do vosso coração, confessai Cristo
como Senhor, sempre dispostos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele
que vo-la peça; com mansidão e respeito, mantende limpa a consciência ...».
Olhemos mais de perto a sociedade portuguesa do
último meio século, genericamente quantificada e qualificada. Sirvo-me do texto
muito recente dum sólido historiador do Portugal contemporâneo e basta
reter-lhe alguns trechos, mais coincidentes com o fio condutor do nosso
discurso.
Façamo-lo à luz da já citada passagem da Gaudium et
Spes: «Provocadas pela inteligência e pela atividade criadora do homem, [as
mudanças] refletem-se no próprio homem, nos seus juízos, nos seus desejos
individuais e coletivos, no seu modo de pensar e de agir, tanto em relação às
coisas como aos homens». E verifiquemo-lo entre nós, onde as mudanças foram
realmente estruturais, como mostram os seguintes quantitativos, logo
qualitativos pela grandeza: «A preços constantes, o PIB per capita passou de
cerca de 5000 euros na década de 1970 para 15.238 euros [atualmente]. A
população é mais urbana, mais saudável, mais instruída, mais velha e mais
diversificada (o país ganhou 400 mil novos residentes através da imigração).
62,8% dos portugueses estão agora ocupados no setor terciário (a agricultura
não representa mais do que 9,9% e a indústria 27,3%). Há mais funcionários
públicos do que trabalhadores rurais. O "Estado Social" tornou-se um
modo de vida: estima-se que mais de 50% dos portugueses retirem rendimentos do
Estado por via de emprego, subsídio, ou pensão» (Rui Ramos, 40 anos que
abalaram Portugal, Expresso – Revista, 5 de janeiro de 2013, p. 78).
Nova relação vida – trabalho, grandes mudanças na
própria vida, necessariamente. - Reflexos humanos e sociais? Também não puderam
faltar, começando pela própria reprodução geracional: «A partir da década de
1970, os anticoncecionais tornaram possível uma sociedade altamente sexualizada,
mas com baixa natalidade. Nascem hoje metade das crianças que nasciam na década
de 1960, e quase metade fora do casamento. Um dos países mais jovens da Europa
ocidental em 1973 é, em 2013, um dos mais envelhecidos. Havia, em 2011, 128
idosos para cada 100 jovens. Em 2050, um em cada três portugueses terá mais de
65 anos. Desde 1983, que Portugal não substitui gerações» (ibidem).
Menos gente nova, com novos e velhos a fazerem
outras coisas, assim estamos hoje. E, os que vivemos há mais tempo, fomos certamente
reparando na grande diferença da paisagem rural e urbana, dos tempos do
Concílio aos nossos dias. Dos anos 80 para os 90, «a velha agricultura e a
velha indústria do século XX desapareceram, deixando um rasto de ruínas –
quintas devolvidas ao mato, fábricas reduzidas às paredes. Arvoredos
regularmente varridos por incêndios, aldeias e bairros fantasmáticos. Ao lado
desse país abandonado, surgiu outro, nas grandes áreas metropolitanas de Lisboa
e Porto, onde a população se concentrou: um país de prédios, estradas, centros
comerciais e muitos automóveis» (ibidem, p. 82).
Desenraizamentos que acarretaram diluições
institucionais. Ainda uma vez, as verificações e os números: «As fontes
tradicionais da autoridade secaram. As forças armadas estão reduzidas a
pequenos corpos profissionais. A universidade integrou intelectuais e artistas,
mais uma enorme massa de estudantes, mas perdeu carisma. Os sindicatos perderam
filiados e poder. A imprensa escrita vive atormentada pela internet. As
televisões trocaram velhas pretensões pedagógicas por um populismo satisfeito.
Apesar da vitalidade religiosa do resto do mundo, as antigas igrejas de Estado
recuam na Europa. Em Portugal, os casamentos não católicos, menos de 20% na
década de 1970, representavam 57,5% em 2010» (ibidem, p. 88).
Não precisamos de ir mais longe para concluir que
as mudanças civilizacionais (mais quantitativas e de organização) e culturais
(mais qualitativas e de mentalidade), bem previstas pelo Concílio, acarretam
profundas consequências para a evangelização, antiga ou nova. O que sobra,
transmite-se com muita dificuldade, embatendo com resistências de toda a ordem,
na família, nas comunidades e no meio ambiente.
O que se há de transmitir "de novo"
ensaia – mas apenas ensaia – "novos métodos e novas expressões",
sempre que assenta num "novo ardor", para usar a trilogia da
"nova evangelização" de João Paulo II (1983). E posso resumir a
reflexão da última assembleia do Sínodo dos Bispos sublinhando alguns desses
"ensaios", que se revelam particularmente promissores, um pouco por
todo o mundo: insistir em comunidades de acolhimento e missão, onde se
reproduza a cena evangélica do poço de Jacob (Jo 4) - do encontro da "água
viva", que Cristo proporciona, ao testemunho alegre de que isso mesmo
aconteceu connosco; a importância das famílias, quer como igrejas domésticas
para os seus membros e vizinhos, quer como tecido básico das comunidades, já
chamadas "famílias de famílias"; a reforçada disponibilidade dos
pastores, e em especial dos "sacerdotes", para o acompanhamento
espiritual e personalizado, também no sacramento da Reconciliação – que no
Sínodo quase apareceu como "o sacramento da nova evangelização"...
A exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in
Europa, de 2003, mereceria mais atenção da nossa parte. Sempre que a releio,
noto-lhe o eco da Gaudium et Spes, quatro décadas depois. Começa também com uma
leitura dos sinais dos tempos, para sugerir de seguida o que a Igreja há de ser
e fazer no novo contexto. Trata-se de herança conciliar em sentido pleno.
Olha para o "velho" continente e não
demora em concluir: «De facto, os nossos dias, com todos os desafios que nos
lançam, apresentam-se como um tempo de crise. Muitos homens e mulheres parecem
desorientados, incertos, sem esperança; e não poucos cristãos partilham estes
estados de alma. Numerosos são os sinais preocupantes que inquietam, ao início
do terceiro milénio, o horizonte do continente europeu...» (Ecclesia in Europa,
7).
"Preocupantes", são agora os sinais dos
tempos. E a exortação apostólica enumera alguns: a "crise da memória e
herança cristãs" (ibidem), tão coincidente com a quebra cultural acima
anotada; o "medo de enfrentar o futuro" (EE, 8), porque dificilmente
se projeta sem base e sem encosto; a "fragmentação da existência"
(ibidem), própria dum ego sem amarração externa e interna; o
"enfraquecimento progressivo da solidariedade" (ibidem), que a remete
para as instituições específicas; e, mais radical ainda, "uma antropologia
sem Deus e sem Cristo" (EE, 9), qual "apostasia silenciosa", ou
"nova cultura". Muito problemática, esta: «Estamos perante o
aparecimento duma nova cultura, influenciada em larga escala pelos mass-media,
com características e conteúdos frequentemente contrários ao Evangelho e à
dignidade da pessoa humana. Também faz parte de tal cultura um agnosticismo
religioso cada vez mais generalizado, conexo com um relativismo moral e
jurídico mais profundo que tem as suas raízes na crise da verdade do homem como
fundamento dos direitos inalienáveis de cada um» (ibidem).
A estes "sinais preocupantes", a
exortação apostólica não deixou de contrapor alguns "sinais de
esperança", considerando-os outras tantas marcas do «influxo do Evangelho
de Cristo na vida da sociedade» (EE, 11). E especificou: a liberdade da Igreja
no Leste europeu, a concentração na missão espiritual e na evangelização, a
maior consciência dos batizados quanto aos seus dons e tarefas e a maior
presença da mulher nas estruturas e setores da comunidade cristã (cf. ibidem).
Não é difícil apurar a coincidência destes pontos com as verificações e
expectativas da Gaudium et Spes – especialmente nos seus números 40 a 45,
dedicados à «missão da Igreja no mundo do nosso tempo». Mas a persistência das
análises só pode motivar-nos para uma correspondência eclesial mais expedita.
Tal correspondência, incidindo na vida interna e
externa da Igreja, ou melhor, redefinindo a sua vida interna no sentido da
missão e da nova evangelização, só poderá ter como suporte a comunidade cristã
nas suas várias concretizações, a que poderemos chamar o sujeito comunitário da
evangelização. Como estipulou em 1988 outra exortação apostólica pós-sinodal,
também em direta decorrência conciliar: «É urgente, sem dúvida, refazer em toda
a parte o tecido cristão da sociedade humana. Mas, a condição é a de refazer o
tecido cristão das próprias comunidades eclesiais...» (Christifideles Laici, nº
34).
A este propósito, a Ecclesia in Europa esclarece e
detalha: «O Evangelho continua a dar os seus frutos nas comunidades paroquiais,
no meio das pessoas consagradas, nas associações de leigos, nos grupos de
oração e de apostolado, nas diversas comunidades juvenis, e também através da
presença e difusão de novos movimentos e realidades eclesiais. De facto, em
cada um deles o mesmo Espírito consegue suscitar renovada dedicação ao
Evangelho, generosa disponibilidade para o serviço, vida cristã caracterizada
por radicalismo evangélico e zelo missionário» (EE, 15).
Inegavelmente, a paróquia continua a ter um papel
central, em termos de vizinhança e ritmo cristão da vida para o comum dos
crentes. Tem a força de milénio e meio de progressiva existência e a debilidade
de ter nascido sobretudo em meio rural, que dificilmente se projeta tal e qual
em meio urbano e, ainda mais, de urbanização massiva. A Ecclesia in Europa crê
que, «embora carecida de constante renovação», a paróquia «é capaz ainda de
proporcionar aos fiéis o espaço para um real exercício da vida cristã e ser
lugar também de autêntica humanização e sociabilização, quer no contexto
dispersivo e anónimo típico das grandes cidades modernas quer em zonas rurais
com pouca população» (EE, 15).
Renovação paroquial que passará pela sua tessitura
interna, em termos de "comunidades de comunidades" e "família de
famílias", para usar expressões típicas do pontificado wojtyliano; passará
também pela necessária cooperação inter-paroquial, no esquema de "unidades
pastorais" ou outro semelhante; e contará decerto com a cooperação que
podem oferecer «os novos movimentos e as novas comunidades eclesiais» que,
sempre segundo a Ecclesia in Europa e as propostas sinodais que lhe subjazem,
«ajudam os cristãos a viverem mais radicalmente segundo o Evangelho; são berço
de diversas vocações e geram novas formas de consagração; promovem sobretudo a
vocação dos leigos e levam-na a exprimir-se nos diversos âmbitos da vida;
favorecem a santidade do povo; podem ser anúncio e exortação para muitos que de
outro modo não se cruzariam com a Igreja; frequentemente apoiam o caminho
ecuménico e abrem sendas para o diálogo inter-religioso; servem de antídoto
contra a difusão das seitas; são de grande ajuda para irradiar vitalidade e
alegria na Igreja» (EE, 16). Também nestes pontos se recebe a herança
conciliar, assim expressa, por exemplo, no decreto sobre o apostolado dos
leigos: «Os cristãos devem exercer o seu apostolado unindo os seus esforços.
Sejam apóstolos tanto nas suas famílias como nas suas paróquias e dioceses –
comunidades que exprimem a natureza comunitária do apostolado -, e também nas
associações e grupos que livremente resolverem formar» (Apostolicam
Actuositatem, 18).
O objetivo continua a ser a missão, que é, ao mesmo
tempo, a natureza da Igreja, como lembrou o Concílio. E não podia ser mais
claro: «A Igreja peregrina é, por natureza, missionária, visto que, segundo o
desígnio de Deus Pai, tem a sua origem na missão do Filho e na missão do
Espírito Santo» (Ad Gentes, 2). E, em tempos de "nova evangelização"
– termo desconhecido pelo Vaticano II -, o mesmo decreto sobre a atividade
missionária da Igreja já previa que as formas, geografias e etapas da
evangelização não podem ser absolutamente sucessivas e estanques. Oiçamos: «Os
grupos humanos no meio dos quais a Igreja vive, não raras vezes, por diversas
razões, mudam radicalmente, de tal forma que podem surgir situações totalmente
novas. A Igreja deve então ponderar se essas situações não exigirão de novo a
sua atividade missionária» (AG, 6).
Quarenta anos depois, a Ecclesia in Europa já não
tem qualquer dúvida a esse respeito: «Em várias partes da Europa, há
necessidade do primeiro anúncio do Evangelho [...]. Com efeito, a Europa faz
parte já daqueles espaços tradicionalmente cristãos, onde, para além duma nova
evangelização, se requer em determinados casos a primeira evangelização. A
Igreja não pode subtrair-se ao dever dum corajoso diagnóstico, que lhe permita
predispor as terapias mais oportunas. Mesmo no "velho" continente
existem extensas áreas sociais e culturais onde se torna necessária uma
verdadeira e própria missio ad gentes» (EE, 46).
E ainda aqui estaremos em autêntica receção conciliar.
D. Manuel Clemente
Jornadas de Formação Permanente do Clero,
Lisboa, 29 de janeiro de 2013